terça-feira, 2 de junho de 2009

A DEFESA DA INTERPRETAÇÃO.


O DISCURSO DA AMBIGUIDADE OU
A DEFESA DA INTERPRETAÇÃO



Wilson Garcia


“Não nos esqueçamos de que devemos preservar os valores da Doutrina Espírita acima de quaisquer interesses mundanos de proselitismo, de arrastamento, conforme os herdamos de Allan Kardec e dos Mensageiros que o conduziram na elaboração da Codificação, a herança que deve permanecer inviolável através dos séculos”.

“Por isso, o Espiritismo cristão é aquele que poderá levar a mensagem da revelação divina a todos os povos e a todas as crenças, sem perder as suas características e sem fragmentar-se para atender a imposições nacionais ou a diretrizes de guias localizados.”

Os dois tópicos acima foram retirados de citações constantes no editorial do jornal Mundo Espírita, publicação institucional da Federação Espírita do Estado do Paraná cujo texto integral foi distribuído pela Internet.

São atribuídos a Bezerra de Menezes e à psicografia de Divaldo Pereira Franco.


Com base neles e no editorial referido, vamos verificar que a análise dos discursos, sob um enfoque pragmático, costuma revelar aspectos interessantes que uma simples leitura muitas vezes oculta.

Comecemos indicando o seguinte:

no referido editorial, o autor procura expressar sua condenação ao fato de a FEB haver apoiado o Encoesp, evento patrocinado pela USE de São Paulo e realizado no Centro de Convenções do Anhembi, em janeiro último.

Ao condenar o apoio, apresenta como justificativa o fato de que a FEB não podia dá-lo sem contrariar o CFN (Conselho Federativo Nacional), que, dois meses antes, se manifestara contra qualquer atitude que pudesse pôr em risco uma possível unidade em torno da doutrina espírita:


“refutou-se, com veemência, a lastimável e prejudicial idéia da “unificação com indulgência”, segundo o próprio editorialista.
O Encoesp, portanto, representa na prática a “unificação com indulgência”.

Mas o ponto crucial do Encoesp surge a seguir no discurso, na construção desta frase:

“ao dar as mãos à CEPA no I Encoesp, [a FEB] tumultuou e desautorizou as ações visando impedir o avanço do denominado “espiritismo laico”.


Ou seja, o evento do Anhembi atingiu sua culminância mais negativa ao abrir espaço para a CEPA e permitir que a FEB, avalizando o evento e se apresentando por representação lá, contribuiu para o “avanço do espiritismo laico”.


Este aspecto fica reforçado na sequência da frase, quando se relembra que a Federação Espírita do Rio Grande do Sul vem diligenciando ações contra esse avanço “muito judiciosamente”.

Deixemos por ora o editorial e busquemos alguns fatos alhures, importantes à compreensão do discurso.


A USE, mentora do Encoesp, havia sido alvo de acusações pesadas em virtude desse evento mas, também, por conta de um projeto colocado em prática, voltado a reunir as diversas instituições no Estado de São Paulo para planejar e executar ações conjuntas de divulgação do Espiritismo.


A CEPA se encontrava entre essas instituições,ao lado de outras como Aliança Espírita Evangélica, Associação Médico Espírita etc.


A Federação Espírita do Estado de São Paulo fora também convidada, mas recusou-se a participar graças à sua disputa por hegemonia com a própria USE.


O Encoesp surgiu a partir da oportunidade de usar o espaço do Anhembi, que foi oferecido pelo Governo em fim de mandato do prefeito Celso Pitta.


Ao estruturar em pouco tempo o Encoesp, a USE viu nas entidades participantes da reunião referida anteriormente uma forma de viabilização do evento. Logo, a CEPA não poderia estar ausente.

Constate-se ainda o seguinte: o projeto de reunião dessas entidades resultou em uma declaração de guerra do Instituto de Educação Espírita à USE.


Este, que, dois anos antes, havia cedido todo o seu edifício à USE por 15 anos, via assinatura de um contrato de aluguel bastante complexo, sentiuse no direito de cobrar da USE o seu comportamento, sob a alegação de que a reunião daquelas entidades no seu espaço significava a descaracterização do uso do espaço, permitido somente para instituições

“genuinamente espíritas”.


Em termos claros, o Instituto acusava a USE de um procedimento antidoutrinário.
Embora estivesse pagando aluguel ao Instituto e, portanto, gozasse do direito de utilizar o prédio a seu critério, a USE decidiu entregar o imóvel e assumir elevados prejuízos financeiros, para não se ver tolhida em seus movimentos.

Por outro lado, o Encoesp também gerou pesadas críticas à USE, vindas de parcelas do movimento espírita paulista sob a inspiração do recentemente falecido Dr. Ary Lex

(ele próprio havia fornecido ao Instituto a mesma inspiração para a discordância anteriormente citada, como membro do seu Conselho Deliberativo).

Feitas essas considerações, retornemos ao discurso do editorial para analisar a sua ambiguidade.
O editorialista argumenta que a falha da FEB foi emprestar apoio ao evento e com isso envolver todo o movimento espírita que ela representa:

“a FEB, ao dar apoio integral ao evento, não levou em conta que a sua atitude não dizia respeito somente a ela, como instituição, mas a todos aqueles Estados que ela diz representar, e que, assim agindo, submeteu todos ao juízo do Movimento Espírita, como se todos fossem concordes com o modelo de unificação então praticado pela USE, já sob a chancela da FEB e, em maior dissonância, do CEI”.


Assim, o comportamento da FEB é tomado como prejudicial ao movimento, reconhecendo-se, portanto, que ela o representa como instância maior.

Desta maneira, e por extensão, é de se crer que a FEB seja a representante legítima do movimento em qualquer cometimento e não apenas neste fato isolado.

O ambíguo é exatamente isso: por que o Encoesp se apresenta como a razão de uma condenação e não outros tantos acontecimentos, capitaneados pela FEB, realizados sob sua inspiração ou coordenação direta?

Neste caso, a ideologia dos Quatro Evangelhos, de Roustaing, assumida publicamente pela FEB, por coerência, deveria despertar o mesmo questionamento uma vez que ao adotar aquela ideologia a instituição o insere no espaço do CFN, onde estão todas as demais instituições federativas aceitas.


O questionamento só não teria sentido se as federativas, entre elas a própria paranaense, estivessem de acordo com aquela ideologia, assumindo-a como sendo oficial do movimento como um todo.

Não é o que ocorre, sabidamente, mesmo no espaço da Federação do Paraná ou até mesmo na Federação do Rio Grande do Sul, à qual a instituição paranaense se alinha no particular do Encoesp.

A ambiguidade, por outro lado, oportuniza a constatação do dilema da submissão do CFN à FEB. De um ponto de vista legal, o CFN não é uma entidade jurídica e sua identidade está de direito e de fato submetida à identidade maior da FEB.


Os termos jurídicos permitem à FEB agir com liberdade e autonomia, a seu talante, em qualquer ocasião.


Quando ela é apontada como legitimadora do CFN - no caso específico do Encoesp ou em outro- ela o é por todos os fatos e não apenas por uma circunstância ocasional.
Mesmo quando se consensa eventualmente no espaço do CFN que este possui liberdade agir,
este consenso não se expressa de fato e sequer se conhece qualquer documento em que este direito esteja explicitado de modo a igualar a FEB às demais federativas.

O título auto-assumido de Casa Máter do Espiritismo brasileiro até aqui incontestado não simboliza simplesmente um fator histórico - o de que a FEB foi a inspiradora de grande parte das federativas existentes e representa a mais antiga instituição espírita no país - mas é aceito no sentido piramidal da estrutura do movimento: ela se coloca no vértice mais alto e é assim aceita.


A sua legitimidade, portanto, não é apenas jurídica mas resultante do consenso implícito ou explícito que se materializa na prática.

Assim, a acusação do editorialista surge mais por conta do dilema - e, neste caso, a acusação deve ser vista como questionamento da estrutura de poder. E parte do seu interior, embora esteja sendo feito fora do espaço do CFN. Mas também aí estimulante e altamente elogiável porque implica a todos os espíritas, legitimando a sua participação no debate por si mesmo salutar.

O outro aspecto dessa nossa análise fica por conta da interpretação dada aos textos em epígrafe. Há neles dois pontos que merecem estudo: o que refere à

“preservação dos valores da doutrina espírita”

e o que aponta para a “fragmentação” que vai resultar do atendimento aos interesses localizados. O discurso utiliza as citações segundo um método bastante difundido nos meios espíritas, qual seja o de validar interpretações.

No caso em foco, a psicografia divaldiana é inserida para reforçar o fato de que ações como a do Encoesp, que trazem em seu bojo o suposto perigo do laicismo cepeano (este tido como uma espécie de demônio a ser combatido) são a confissão explícita da não preservação dos valores doutrinários e permitem a fragmentação do conteúdo filosófico do Espiritismo. Em razão disso, o comportamento da FEB merece reprovação veemente.

A questão, contudo, assume outros contornos quando se analisa os excertos psicografados sob o ângulo da sua validade objetiva.
Aí se verifica que não sobra sustentação ao editorialista, uma vez que a interpretação é forçada na direção do atendimento àquilo que ele entende por preservação dos valores e por fragmentação doutrinária.


A rigor, esses valores e esta fragmentação não estão em jogo e são meros instrumentos formais que o autor buscou para alcançar certas metas. Mesmo quando se permite pensar a preservação dos valores a partir do contexto em que a doutrina é praticada, também aí a questão fica submetida ao entendimento pessoal do autor, uma vez que aquilo que ele aponta como valor não está explícito senão em sua mente, o que, em suma, não significa o mesmo para outros indivíduos.

Tanto mais difícil ficaria pensar em preservação e meios de evitar a fragmentação se deslocarmos nosso foco para os textos considerados kardecistas, os quais se encontram nas obras assinadas pelo Codificador, porque a relação interacionista entre desiguais - CEPA, FEB, USE, Aliança etc. - não é nem suficiente nem bom argumento para justificá-las.

Vamos além: é absolutamente impossível pensar nas práticas sem considerar os desiguais,
uma vez que as práticas não têm absoluta condição de preservação de valores originais porque são recriadas a partir da cultura de cada indivíduo ou grupo.


Historicamente, este fato é muito visível.

A idéia, portanto, que nos parece prevalecente é a do poder que está
em jogo, mas pode-se também pensar em ações coordenadas para impedir
que determinados grupos sejam aceitos a partir de preconceitos existentes
na parcela reclamante.


Sabe-se claramente que o preconceito tem sua própria
ética. Mas isso é outra questão.

Artigo publicado no jornal OPINIÃO, de julho/2001


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